Uma cortina de pessoas se
deslocava: algumas delas em transe; já outras, conscientes em demasia, estavam
desesperadas para que aquele sacrifício chegasse logo ao fim. O chão de barro
socado, buraco, poças, resto de feira, fome, sangue e sofrimento recebia, sem
reclamar, as “marcas digitais” de sapatos que outrora haviam desfilado em
mármore fino e tapete planaltino.
A “administração local” havia
recebido o informe – informal – anteriormente para que, durante a romaria,
ocupassem os postos da inexistência, do ocultamento, de modo a entender que de
tudo seria possível naquela região, menos o controle por parte de meia-dúzia de
“revolucionários” semianalfabetos de cor espúria. Feito o (con)trato, tal qual
precisou de um intercessor chamado capital “beneficente”, estava liberado o
parque de diversões.
Dois ou três homens socialmente
aceitos detinham pastas, câmeras, canetas e crachás pendurados. Vestiam-se de
roupas televisivas, charmosas, conhecidas de todos naquele local: de alguns
pelo seu uso; já de outros, simplesmente pelo seu manuseio e comprometido
tratamento. No centro daquele reboliço um carismático sujeito de barba feita,
sem paletó e gravata no repertório, com as mangas dobradas da sua camisa branca
que, nas entrelinhas, diziam sem o pronunciamento de uma palavra, o seguinte
texto: “Mãos à obra”. Este ao centro era o eixo de uma multidão de Marias e
Josés, de Joãozinhos da Silva empolgados e seus joelhos acinzentados. Mais afastado
um pouco, um dos dois ou três homens, registrava tudo em cliques para que nada
se perdesse, afinal, quatro anos é um tempo bastante considerável.
Como de costume, pois nem mesmo
um residente de manicômio faria diferente, reuniram-se em volta do campinho e
suas traves sem rede já enferrujadas. Na pracinha assentada ao lado, os
balanços, agora, eram compreendidos apenas por sua estrutura, já que, sua
consulta mais recente, datava da última cordial visita. As gangorras ainda
resistiam, respirando por aparelhos, mas resistiam. O escorrega ainda estava
lá, de pé, com um enorme buraco em sua chegada que emocionava os mais jovens,
mas que o tornava praticamente inutilizável em dias pós-chuvas, buraco este que
justificava o constante uso do instrumento. O cenário em questão configurava a
Disneylândia dos humildes, seu último e maior requerimento, tendo em vista que
tudo o mais lhes era apenas prometido e afogado em desuso, descrédito e
considerado desumano ou excesso.
Lá ao fundo, há uns cinquenta
metros de distância, muros altos que se tornaram painéis artísticos originais
produzidos pelos frequentadores daquilo que podemos chamar de ferramenta de
docilização. Não mais que dois andares, janelas em cortes horizontais
protegidas por grades – pois é arriscado demais para os frequentadores vãos
àquela altura, como se eles não fossem experientes ao se aventurar empinando
pipa em lajes quatro vezes superiores àquele pé direito –, prédio em formato
retangular, uma quadra poliesportiva no térreo, nada mais, ou nada menos que, a
saber: a escola.
Entre os dois aparelhos – digo a pracinha
e a escola –, também com motor robusto e pintado de preto, mas sem ser o “caveirão”
desta vez, um meio-caminhão-comício com bandeirolas, faixas e bolas de gás a
fim de romantizar o teatro. Feita a passagem de som e sua verificação positiva,
autoriza-se a distribuição de guloseimas, carrinhos azuis e bonecas rosa de
fabricação chinesa, broches e adesivos, confetes e serpentinas. Quanta festa!
O homem branco de barba feita
prepara a sua garganta com mais um gole de água gelada, gentilmente trazida em
garrafa pet por uma das mais antigas moradoras: Dona Marlene. Retribui o gesto,
amargo e preocupado por dentro dada à procedência da água servida em copo que
outrora fora reservatório de milho, ervilha ou geleia de mocotó, com um beijo
na testa de Dona Marlene; em seguida, com as duas mãos no rosto daquela senhora
de pele oleosa e enrugada, com o olhar de quem fita o seu mais precioso bem,
sorri o homem e, com um apertado e confortável abraço, encerra aquele ato.
Caminha ao palanque, o louvável e admirável homem do povo, como o mártir dos
mais humildes. Quanta beleza!
Ao se elevar, bem como é elevado
o bondoso Deus – ou Deusa – aos religiosos, palmas, assobios e gritos de
veneração são proferidos. Aquele generoso homem letrado, primogênito da
aristocracia mais conservadora já conhecida, discursa calorosamente aos
desocupados que, de acordo com o discurso comum, escolheram o ócio e a
marginalidade como profissão. Mais uma vez, como se a memória fosse material
descartável, repete tudo aquilo que já teria dito tempos atrás. Todos escutam,
mas sem ouvir, o conjunto oratório de palavras motivadoras, empreendedoras, de
esperança e comprometimento com a mudança. Ao lado dele, a fim de garantir
legalmente toda e qualquer necessidade possível, o padre da paróquia, o pastor
comunitário líder de rebanhos, o presidente da associação de moradores e não
mais que quatro ou cinco Marias e Josés vestidos de uniformes com siglas
partidárias e sua respectiva legenda que, como sabemos, variam entre os 15 e 45
graus (de cinismo, covardia, ou, seja lá o que for). Quanta tragédia!
Trinta minutos se passaram: segue
a carreata. O fervor que rondava aquele grande encontro perde, gradualmente, o seu
encanto. Uma van cinza, descaracterizada e vidros escuros, bem escuros, mais
dois carros de escolta, surgem: encostam ao lado do picadeiro; de fora, os
palhaços apenas assistem – tão pobres e coitados como antes, talvez, até mais.
Adeuses e contaminações, todos, em seus devidos lugares – missão cumprida. Lá
fora os camburões aguardam na fila, pois, desejam enormemente cumprir com os
seus protocolos diários. Aqueles que precisaram se esconder voltam aos postos
de antes, empunhando aquilo que lhes garante a liderança, prontos para o caos
que é a realidade os esquecidos.
Eu, sinceramente, não sabia o
lugar em que estava. Não sabia, pois, não conseguia entender o que é isso que
acontece. Quem sabe, na mais otimista das possibilidades, não passasse tudo isso
de uma ilusão.
Grita o meu relógio: acordo do
pesadelo que é a vida.






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